Ideal gaúcho

Há quem só lembre de que é gaúcho quando chega a Semana Farroupilha. Há quem só lembre no final de semana, quando se reúnem com familiares ou amigos em torno de um bom churrasco. Há os que tenham a presença da tradição todo dia, consigo – mas nem se aperceba, na correria dos dias e da labuta, do quanto, o ser gaúcho está presente em seu cotidiano. Como, por exemplo, no simples ato de tomar chimarrão. O quanto este pequeno gesto, quase automático para nós e tão estranho para quem é de fora, concede a cada um de nós um tanto de identidade. E peculiaridade. E há os que transformam a tradição nativa em militância cultural, em bandeira de luta, em causa de vida. São estes homens e mulheres que estão fomentando o tradicionalismo pelos diversos Centros de Tradições Gaúchas, piquetes, espraiados em manifestações artísticas, na confecção de vestuários da moda, na gastronomia riquíssima que nos torna singulares e atrativos ao mundo, nos promotores de eventos e gestores públicos que sabem reconhecer o valor de uma identidade com raízes tão fortes.
De outra banda, também há os que, mesmo sendo daqui e morando aqui e nem saindo da nossa terra, refutam tudo isto. A humanidade é complexa. Tem de tudo. Como também os que, como eu, são ecléticos, seletivos, apaixonados por tudo o que há de bem feito na humanidade – e, além de bem feito, feito para o bem -, não importa a origem. Particularmente, sou um grande apreciador da nossa cultura, ainda que ninguém vá me ver pilchado costumeiramente, como os verdadeiros militantes do tradicionalismo. Mas gosto da nossa melhor música, com Borghetti, Délcio Tavares e tantos outros, nossa literatura, de Érico Veríssimo e Assis Brasil, nossa culinária (sou apaixonado por carreteiro, seja na variante que for) e tantas outras coisas que, certa feita, os irmãos Ramil chegaram a colocar, parte delas, como integrantes de uma nossa “estética do frio”, que neste país continental seria um privilégio nosso, cá do sul.
O que não gosto é quando se confunde intolerância com coragem, estupidez com valentia, preconceito com raízes, violência com bravura. Muito menos quando tenta se enquadrar bobagem sem limites ou respeito como arte. E isto vale para qualquer gênero ou vertente cultural. Foi para o lado da ignorância, da ausência de respeito ao outro ou de incentivo à violência, bom, aí perdeu o amigo. Como não tenho, usando o vocabulário do bom gaúcho, arreios com partidos ou grupos de qualquer natureza, permito que minha liberdade de pensamento e expressão tenham, como crivo para gostar ou não, a única condição de, para além de ser belo, ser bom. E ser bom é ser do bem. É querer paz, fraternidade. E é disso que o verdadeiro gaúcho, multifacetado, criado num solo povoado pelas adversidades todas que a história e a geografia lhe impuseram, gosta de falar. Da sua busca por paz. E por respeito. Para todos. Ter nossa identidade reforçada é ser um rebelde do bem, nesses tempos de globalização massificada, onde se amassa as identidades locais em nome da padronização que robotiza para gerar consumo universal, onde se varre as particularidades para criar uma massa robotizada e autômata sem sentimento próprio.
Na Semana de Farroupilha de Montenegro, muito bem organizada por sinal, fui assistir o Luiz Marenco. Por sua música e poesia, das quais sou fã. Na abertura do evento, a Secretária de Cultura da cidade, Dani Boos, alertou sobre o uso da faca no ambiente de confraternização. Pediu para que todos os que, porventura, as portassem, guardassem num dos estandes do evento. Certa feita o presidente do MTG me pediu que abordasse o assunto numa coluna para o Correio do Povo, em razão de problemas ocorridos em Porto Alegre, no Parque da Harmonia. Até porque a faca não faz parte da indumentária gaúcha, está escrito. Quem é tradicionalista de verdade deve saber disso. Ela pertence à lida campeira. Não é para dançar no fandango e muito menos para desfilar no meio do povo. Quando escrevi sobre o tema, recebi e-mails de todo estado, alguns a favor, outros contra. O que importa é que faca é uma arma. E, numa ambiente onde há consumo de álcool, é óbvio que pode dar problema. Quantos já tivemos? Mas o alerta da Secretária Dani foi no estilo daquelas orientações com “puxada de orelha e carinho” que só as professoras conseguem fazer. Eu aposto que todos prestaram atenção. E que quem estava a fim de contrariar a regra, só de birra, pensou melhor. Afinal, “humanidade” sempre será uma palavra forte dentro do ideal gaúcho.



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