O Natal precoce de hoje

Não sei se você também percebeu, mas desconfio de que o Natal, agora, começa em setembro. Outubro, no máximo. Isto se o comércio for do tipo contido, discreto, tradicional e quase monástico, desses que esperam o Dia das Crianças passar antes de pendurar um Papai Noel inflável na porta. Era incrível ver a disputa de bonecos do bom velhinho com bruxas, múmias e vampiros no Halloween.
Fui surpreendido, na capital, por um trenó na frente de uma farmácia, ainda em meio às promoções de primavera e com aquele friozito temporão que andou fazendo. Encasacado, cheguei a cogitar que estava em Noa Iorque, não Porto Alegre. Coisas absurdas acontecem. Vá saber o que botaram na minha bebida. Depois do metanol, ou do etanol falsificado para falsificar o álcool, tudo é possível. Porém concluí que o bom velhinho só tinha descido para comprar um antialérgico mesmo, que a vida no Rio Grande do Sul não é barbada. Viver quatro estações num único dia requer reserva financeira para tratar gripes e resfriados e, acima de tudo, casca grossa. Mesmo para um sujeito vindo lá do Pólo Norte.
Os shoppings já estão em modo neve artificial desde o feriado de Finados. Antigamente — e, veja bem, nem faz tanto tempo assim, pois tenho pouco mais de meio século de vida, o que é um nadica perto do tempo de presença humana no planeta — o Natal era um evento que tinha a gentileza de esperar dezembro chegar. O espírito natalino vinha junto com o décimo terceiro e o panetone, e não antes até da fatura do cartão de crédito da Black Friday. Hoje, é um atropelo apressado de sinos, renas e luzes piscantes que, no final de dezembro, já conseguiram até enjoar.
Aliás, sobre as luzes: em tempos de crise climática, essa obsessão por iluminar cada poste, árvore, casa, prédio e por aí vai, me parece um manifesto perigoso de negação. O planeta pede sombra, e a gente responde com LED de 500 watts piscando “Feliz Natal” em todas as direções. O consumo de energia em dezembro é tanto que desconfio que o Polo Norte esteja derretendo não por culpa do CO₂, mas das lâmpadas e cataratas de piscas. Tem até concurso para casa mais iluminada em diversas cidades. Será que estão usando energia boa, ou incentivando seu uso, pelo menos?
E tem o fator humano. As pessoas andam tão apressadas para “entrar no clima natalino” que já vi amigo trocando presente de “Amigo Secreto” em novembro. E ainda resmungando: “o bom é que a gente já se livra”. O espírito de confraternização virou um item de checklist. As famílias marcam ceia como se fosse reunião de condomínio: “cada um leva um prato e ninguém fala de política!”. Que falar de política, hoje em dia, estraga qualquer reunião familiar, infelizmente.
Enquanto isso, as crianças crescem achando que Natal é um período que começa logo depois da semana da pátria e termina quando desmontam a árvore – geralmente lá perto do carnaval, porque ninguém tem tempo de recolher e guardar os enfeites. E o Papai Noel, coitado, não tem mais descanso. Deve estar exausto com essa nova turnê gigantesca, confundindo carta de presente com boleto e carnê do IPTU.
Talvez o mais irônico de tudo seja que, quanto mais cedo o Natal chega, menos ele significa. A pressa é tanta que a data vai se esvaziando de sentido, como um balão de gás esquecido num canto da festa. Falamos de amor, paz e solidariedade. Mas o que move a engrenagem é a liquidação em doze vezes sem juros. O apelo. O flerte com novas dívidas sob a desculpa “ah, é Natal”. Se continuarmos nesse ritmo, as luzes de Natal nem serão desligadas. Ficarão lá, piscando o ano inteiro, com o espírito natalino terceirizado para o marketing. E o amor ao próximo vinculado ao limite do cartão de crédito. E quando finalmente chegar o dia 25, talvez alguém olhe em volta e diga, com genuína surpresa: Ué, já é Natal? E talvez até lembre daquela história de menino Jesus, Reis Magos e etc. Porque o Natal, esse mesmo, o de abraçar, rir e esquecer por um instante das contas e das tragédias, o de permitir que o amor tome conta de nossas almas, ah, esse anda cada vez mais atrasado. Mesmo que as luzes jurem o contrário.



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