A batata, a pressa e o fim da paz

Eu acordo cedo. Mais cedo do que preciso e muito mais cedo do que gostaria. O lado bom é que me dá tempo para passar um café, me atualizar das notícias, planejar o dia de trabalho e da casa, ler e talvez até escrever um pouco. Dia desses, numa dessas manhãs, acordei decidido a começar o dia em paz. Porque, confesso aos que não convivem comigo, que não sou uma pessoa fácil. O mundo me incomoda, a facilidade com que as coisas saem dos trilhos nesse ritmo de vida acelerado e superficial que temos hoje, não me faz bem. Viro um velho resmungão, volta e meia. O que não é bom para ninguém. Então fiz um pacto comigo mesmo: hoje não vou me irritar com nada. Nem com o despertador de celular, que ajustei apenas por segurança e na vã ilusão de que vou finalmente conseguir dormir o quanto quero e preciso, e sempre esqueço de desativar, tornando as músicas que mais gosto insuportáveis em poucos dias.
Dia de feira em um dos meus mercados favoritos (sou um caçador de ofertas). Pois bem. Cheguei lá com o espírito de Buda e um planejamento na cabeça da relação saúde entre frutas e legumes e o preço total máximo para gastar. Não anoto nada. Confio na mente, ou pelo menos a exercito, pois vez em quando ela me trai. Como de praxe, o movimento era grande. Não sou o único a aproveitar os dias de descontos no mercado. Brasileiro aprendeu isto com a hiperinflação dos anos 70 e 80 onde as coisas subiam todos os dias – e que tem gente lembrando disso com saudade, vá entender.
Foi então que o homem do meu lado, olhar encasquetado de quem também dorme mal, mas não fez acordo nenhum de paz com o mundo e não quer saber, resolve me cutucar no ombro. Eu estava mentalmente avaliando a qualidade da batata e se não estava esquecendo de algo, pois já me aproximava de encerrar minhas compras.
— O senhor vai demorar muito aí pra escolher?
Respondi com um sorriso. “Não, claro que não. Só mais um segundo.”
— Um segundo é demais! — ele elevou a voz, bufou, e estendeu o braço como se quisesse me empurrar.
Um rapaz do mercado, que empilhava tomates, nos olhou. Um outro senhor de boné, um pouco distante, murmurou: “Essa geração de hoje não respeita o tempo alheio”. Geração de agora? Eu? Com meus mais de cinquenta? Larguei a batata no carrinho antes que virasse o epicentro de uma micro guerra fria. Respirei fundo, ainda fiel ao meu pacto matinal da serenidade. Mas o homem insistiu:
— É por isso que este país não vai pra frente.
E foi aí que o Buda dentro de mim foi dar uma volta. Deixou só o velho resmungão sozinho. O que não leva desaforo pra casa. E quase respondi que o país não vai pra frente porque há quem não consiga esperar vinte segundos sem transformar o outro num inimigo. Que a pressa virou bandeira, um atestado de importância. Que a intolerância se tornou uma regra de relações, reais e virtuais. Que ser violento e xingar dá uma audiência alta e doentia. E que ele fosse se danar, eu ficaria ali o quanto quisesse e fim de assunto.
Mas não. Preferi dar as costas e ir embora. Eu, minhas batatas, meus legumes, verduras e frutas. E minha incerteza sobre o que, afinal, eu estava esquecendo. Saí.
Na rua, vi um cachorro deitado na calçada, cochilando no sol. Alguém iria reclamar, olha aí, cusco vagabundo, atrapalhando quem passa, quem é o miserável que deixa um bicho desses abandonado? E se alguém aparecesse para ajudar o cão, reclamaria que enquanto criança passa fome, ficam aí ajudando cusco. E se outro falasse em fazer algo para minimizar a fome do povo, reclamaria que falar de trabalhar, que é bom, ninguém fala. E se alguém…
Enfim. O cachorro dormia em paz, alheio às urgências humanas. Pelo menos por enquanto.
Talvez o mundo não esteja pior porque existem pessoas ruins. Elas sempre existiram. Talvez esteja pior porque todos nós estamos cansados, tensos, prontos pra reagir como se cada contrariedade fosse uma ofensa pessoal. E porque esquecemos o poder do silêncio, do riso e até de deixar o outro escolher suas batatas em paz.
Cheguei em casa e só então lembrei – e a gente sempre só vai lembrar o que esqueceu na lista de compras quando chega em casa. Esqueci da cenoura e da beringela. Para um gratinado de legumes saudável que eu pretendia oferecer à minha mulher e às crianças. Rompi meu pacto pela paz do dia. Briguei comigo mesmo. E fiz batata frita.



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