Governador, por que fechar a Lendária?

Há decisões que atravessam documentos oficiais e alcançam lugares muito mais fundos: a memória, a identidade, o sentido de pertencimento. O projeto de lei complementar nº 497/2025, que o governo remeteu à Assembleia semana passada, entre outras adequações importantes à nossa histórica “briosa”, propõe o fechamento da Escola da Brigada Militar em Montenegro. É uma dessas decisões que não se restringem à racionalidade administrativa. Toca a história de uma instituição que, por mais de meio século, formou homens e mulheres destinados a proteger os gaúchos. E que faz a diferença numa região que é vizinha das mais desafiadoras e violentas do Rio Grande do Sul – Serra, Sinos e Metropolitana – mas, historicamente, mesmo assim é esquecida em termos de recursos humanos para a segurança pública.
Obviamente esta comunidade se levantou, descontente com a notícia. Josi Paz ergueu a bandeira e subiu o tom, algo que nem faz muito o seu estilo frequentemente gentil e carinhoso de ser, e a mobilização reuniu lideranças políticas de todos os matizes. Setores importantes da comunidade como a OAB, a ACI e Sindilojas se manifestaram contra o ato do governo. Lideranças comunitárias levantaram a voz. Prefeito e vice de Montenegro largaram suas agendas e foram aos gabinetes da capital exigir que a Escola não feche. É uma escola que teve menos prejuízos, mesmo que às margens do Rio Caí, do que tantos quartéis da BM na capital. Então, governador, por que fechar a Lendária?
A “Lendária”, como é conhecida pelo efetivo da BM que passou por lá, nunca foi apenas um prédio. É um símbolo. Um elo entre a Brigada Militar e uma comunidade que cresceu acompanhando seus ritos, suas formaturas, seus cantos e seus passos firmes. A escola resistiu ao tempo, às mudanças de governo e, mais recentemente e como todo o RS, à tragédia de maio de 2024, quando grande parte do estado foi devastada. Mesmo assim, permaneceu de pé, reconstruída com esforço e com uma estrutura exemplar. Talvez sua recuperação tenha sido muito menos dispendiosa que de outros quartéis atingidos, como o próprio QG da BM, na capital. Que também seguirão na mira de futuros problemas climáticos. Então, se a natureza não a derrubou, porque uma canetada o faria?
Modernizar uma instituição é necessário, ninguém discorda. Mas modernização não exige apagar raízes. Ao contrário, instituições longevas, como as religiosas e as militares, atravessam séculos porque sabem equilibrar tradição e renovação, respeitando suas histórias e aqueles que as constroem. Fechar uma escola não é um gesto neutro: escolas não se fecham, se ampliam; não se silenciam, se fortalecem. É também impossível ignorar o impacto humano dessa decisão. Profissionais da segurança pública, que há anos enfrentam perdas salariais acumuladas, seguem atuando com dedicação apesar da falta de incremento financeiro. É justo reconhecer que este governo, ao menos, devolveu a dignidade de, pelo menos, pagar os salários em dia, diferente do caos vivido na gestão anterior. Mas dignidade também se compõe de respeito simbólico à trajetória, ao trabalho, à casa que formou gerações de policiais.
O fechamento da escola em Montenegro não “cancela” apenas salas de aula. Apaga memórias, rompe vínculos, empobrece uma história que ajudou a moldar a identidade da Brigada Militar. E talvez seja justamente neste ponto que reside a maior dor: quando uma instituição perde seus marcos, perde também parte de si. Modernizar, sim. Desfigurar, não. Porque algumas construções não se sustentam apenas com concreto. Sustentam-se com valores. E esses, quando demolidos, não se reerguem com facilidade.



0 Comentários